Por
Vladimiro Miranda*
Alguns saberão que
vivi algum tempo em Macau e lá fui responsável pela Direcção do
INESC Macau. Nessas funções, preocupei-me em entender porque é que
Macau tinha uma tradição tecnológica tão incipiente, apesar de ser
um território com um produto per capita superior ao de Portugal. Para
isso, tratei o assunto como se abordasse casos de estudo - e tinha
ali, à mão, para comparar, Hong Kong e Singapura.
Encurtando razões,
do meu estudo fez parte analisar como a comunicação social veiculava
elementos de cultura tecnológica. A conclusão foi esmagadora, na sua
coerência.
Dois dos jornais mais
representativos e de massas da região são o Straits Times (S) e o
South China Mornig Post (HK). Uma leitura deles permitiu-me logo
detectar a importância dedicada em Singapura à cultura científica e
tecnológica, aliada não só à actividade económica como ao
quotidiano da vida. Pode medir-se tal pela enormíssima percentagem de
notícias e artigos que, de uma maneira ou de outra, respiravam
tecnologia. Quem quiser comprovar que assim é, pode consultar a
versão on-line do jornal.
Já em Hong Kong, na
cultura veiculada nos meios de comunicação social, a presença de
tecnologia era mitigada por uma muito mais elevada atenção à
política, aos negócios e a histórias e dramas do quotidiano.
Pareceu-me, na época, coerente esta análise com o facto de Singapura
se afirmar como uma região criativa, mesmo industrial, enquanto em
Hong Kong prevalecia a sensação de praça financeira.
Nos meios de
comunicação social de Macau, a propósito, a presença de tecnologia
era praticamente nula. Ora, se a cultura não está presente, como
querer construir uma sociedade melhor baseada nela? A ausência, até
tempos recentes, de uma Universidade foi, certamente, um dos factores
geradores de uma cultura ausente de tecnologia.
Se se transportar
esta análise para o caso de Portugal, não nos será difícil
constatar que a cultura com raiz em ciência e tecnologia não é a
matriz caracterizadora da nossa sociedade actual. Folheiem-se os
principais jornais e veremos que, fora de páginas (louváveis)
dedicadas a temas de ciência, a cultura que transparece das notícias
não respira um aroma tecnológico.
Isso não se mede só
pela percentagem de notícias - mas, talvez principalmente, pela forma
como editorialistas, articulistas, tribunos se expressam, e também no
conteúdo e forma de organização das notícias. De muitas formas, os
jornalistas, sendo portugueses, espelham a cultura dominante.
Também o poder
político o espelha, no seu discurso (sem pretender generalizar e
atribuir a todos o mesmo pecado). Mas é fácil de se ver que, sem
cultura científica, o poder substitui a racionalidade pela emoção e
pela superstição.
Em vez do discurso
pedagógico, surge o discurso que se orienta por formas de abordagem
dos problemas que não gostamos de identificar nos nossos alunos de
engenharia. A cultura científica é uma cultura de humildade, de
seriedade e de isenção. A anti-cultura, a cultura dominante do
discurso corrente, é uma cultura que não respeita os factos se os
factos não interessarem; que não aceita a revisão dos pressupostos
se a demonstração da sua fragilidade se tornar evidente; que não
aceita a verificação independente; que exagera o que convém e omite
o que incomoda para sustentar opiniões pré-formadas; e que falsifica
ou distorce dados honestamente produzidos por estudos científicos,
descredibilizando a própria ciência.
Casos recentes de
questões exageradas ou atoardas sem fundamento, são: a questão das
antenas dos telemóveis; a questão do surto de meningite; a questão
do urânio empobrecido; a questão dos impactos ambientais que impedem
usos de energia eólica; a questão do impacto de campos eléctricos
das linhas aéreas na saúde; a (inevitável) questão dos resíduos
industriais perigosos.... Casos em que os factos são ocultados ou
distorcidos para servir interesses económicos ou políticos: a
questão das "vacas loucas"; a questão dos transgénicos...
Que o poder político
incorra nestes pecados, é de lamentar, já que esperaríamos um
sentido de elevação e um discurso da pedagogia da razão por parte
dos que escolhemos para nossos "melhores". Mas que a
própria comunidade científica e de cultura não saiba organizar o
seu próprio discurso, agride-nos directamente no nosso capital de
esperança.
Quando o poder não
veicula uma cultura de razão, abre a porta à superstição: e a um
cortejo de outros demónios.
Vêm estas reflexões
a propósito de um oportuníssimo documento dado à estampa no jornal
Público recentemente, subescrito por três cientistas acima de toda a
suspeita, que coincidem em ser personalidades relevantes de institutos
de investigação de qualidade e competência reconhecidas e isentos
de qualquer querela: Manuel Sobrinho Simões, Pedro Guedes de
Oliveira, Rui Campos Guimarães - ou seja, IPATIMUP, INESC Porto,
INEGI. Espero que a sua leitura tenha merecido a cuidada atenção de
todos os leitores do BIP.
Interpreto esse
documento corajoso e oportuno como o exercício do direito à defesa
da dignidade da ciência nacional.
A higiene também é
um valor.
PS. Esse texto foi
publicado no jornal Público, mas já não se encontra on-line.
Poderei disponibilizar uma cópia, todavia, a quem nisso mostrar
interesse.
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Director do INESC Porto |