Número 6 Público / 20 Interno (Julho 2002)
Ficha técnica
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Hoje falo eu:

A responsabilidade do poder na propagação da superstição

 

Por Vladimiro Miranda*

Alguns saberão que vivi algum tempo em Macau e lá fui responsável pela Direcção do INESC Macau. Nessas funções, preocupei-me em entender porque é que Macau tinha uma tradição tecnológica tão incipiente, apesar de ser um território com um produto per capita superior ao de Portugal. Para isso, tratei o assunto como se abordasse casos de estudo - e tinha ali, à mão, para comparar, Hong Kong e Singapura.

Encurtando razões, do meu estudo fez parte analisar como a comunicação social veiculava elementos de cultura tecnológica. A conclusão foi esmagadora, na sua coerência.

Dois dos jornais mais representativos e de massas da região são o Straits Times (S) e o South China Mornig Post (HK). Uma leitura deles permitiu-me logo detectar a importância dedicada em Singapura à cultura científica e tecnológica, aliada não só à actividade económica como ao quotidiano da vida. Pode medir-se tal pela enormíssima percentagem de notícias e artigos que, de uma maneira ou de outra, respiravam tecnologia. Quem quiser comprovar que assim é, pode consultar a versão on-line do jornal.

Já em Hong Kong, na cultura veiculada nos meios de comunicação social, a presença de tecnologia era mitigada por uma muito mais elevada atenção à política, aos negócios e a histórias e dramas do quotidiano. Pareceu-me, na época, coerente esta análise com o facto de Singapura se afirmar como uma região criativa, mesmo industrial, enquanto em Hong Kong prevalecia a sensação de praça financeira.

Nos meios de comunicação social de Macau, a propósito, a presença de tecnologia era praticamente nula. Ora, se a cultura não está presente, como querer construir uma sociedade melhor baseada nela? A ausência, até tempos recentes, de uma Universidade foi, certamente, um dos factores geradores de uma cultura ausente de tecnologia.

Se se transportar esta análise para o caso de Portugal, não nos será difícil constatar que a cultura com raiz em ciência e tecnologia não é a matriz caracterizadora da nossa sociedade actual. Folheiem-se os principais jornais e veremos que, fora de páginas (louváveis) dedicadas a temas de ciência, a cultura que transparece das notícias não respira um aroma tecnológico.

Isso não se mede só pela percentagem de notícias - mas, talvez principalmente, pela forma como editorialistas, articulistas, tribunos se expressam, e também no conteúdo e forma de organização das notícias. De muitas formas, os jornalistas, sendo portugueses, espelham a cultura dominante.

Também o poder político o espelha, no seu discurso (sem pretender generalizar e atribuir a todos o mesmo pecado). Mas é fácil de se ver que, sem cultura científica, o poder substitui a racionalidade pela emoção e pela superstição.

Em vez do discurso pedagógico, surge o discurso que se orienta por formas de abordagem dos problemas que não gostamos de identificar nos nossos alunos de engenharia. A cultura científica é uma cultura de humildade, de seriedade e de isenção. A anti-cultura, a cultura dominante do discurso corrente, é uma cultura que não respeita os factos se os factos não interessarem; que não aceita a revisão dos pressupostos se a demonstração da sua fragilidade se tornar evidente; que não aceita a verificação independente; que exagera o que convém e omite o que incomoda para sustentar opiniões pré-formadas; e que falsifica ou distorce dados honestamente produzidos por estudos científicos, descredibilizando a própria ciência.

Casos recentes de questões exageradas ou atoardas sem fundamento, são: a questão das antenas dos telemóveis; a questão do surto de meningite; a questão do urânio empobrecido; a questão dos impactos ambientais que impedem usos de energia eólica; a questão do impacto de campos eléctricos das linhas aéreas na saúde; a (inevitável) questão dos resíduos industriais perigosos.... Casos em que os factos são ocultados ou distorcidos para servir interesses económicos ou políticos: a questão das "vacas loucas"; a questão dos transgénicos...

Que o poder político incorra nestes pecados, é de lamentar, já que esperaríamos um sentido de elevação e um discurso da pedagogia da razão por parte dos que escolhemos para nossos "melhores". Mas que a própria comunidade científica e de cultura não saiba organizar o seu próprio discurso, agride-nos directamente no nosso capital de esperança.

Quando o poder não veicula uma cultura de razão, abre a porta à superstição: e a um cortejo de outros demónios.

Vêm estas reflexões a propósito de um oportuníssimo documento dado à estampa no jornal Público recentemente, subescrito por três cientistas acima de toda a suspeita, que coincidem em ser personalidades relevantes de institutos de investigação de qualidade e competência reconhecidas e isentos de qualquer querela: Manuel Sobrinho Simões, Pedro Guedes de Oliveira, Rui Campos Guimarães - ou seja, IPATIMUP, INESC Porto, INEGI. Espero que a sua leitura tenha merecido a cuidada atenção de todos os leitores do BIP.

Interpreto esse documento corajoso e oportuno como o exercício do direito à defesa da dignidade da ciência nacional.

A higiene também é um valor.

PS. Esse texto foi publicado no jornal Público, mas já não se encontra on-line. Poderei disponibilizar uma cópia, todavia, a quem nisso mostrar interesse.

 

* Director do INESC Porto

 

 

   TRIBUNA

   Artigo de opinião de convidado da Redacção do BIP.