B o l e t i m Número 56 de Novembro 2005 - Ano VI
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E D I T O R I A L

 

O valor civilizacional do Ciência Viva*

 

Em Dover, cidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, o Conselho Directivo da escola secundária local decidiu, este ano mesmo, alterar os programas lectivos para obrigar os professores a ensinar, na disciplina de ciências naturais, a “teoria” do “desenho inteligente” (intelligent design), como contraponto à teoria da evolução cujo conceito inicial devemos a Darwin. Assistimos hoje, regularmente e em especial nos Estados Unidos, a uma verdadeira ofensiva conta o pensamento laico e científico, por parte de organizações cuja agenda de fanatismo religioso não as distingue de outros fanáticos no mundo.

A chamada “teoria” do “desenho inteligente” propõe que o evolucionismo está errado e que o que observamos na natureza é tão complexo que só poderia ter sido criado por um ser superior com a capacidade para tal engenharia. É a religião fanática entrando pela porta do cavalo, vestindo-se de roupas respeitáveis (já não é fé, é teoria, já não é deus mas uma inteligência superior ou extra-terrestre) para interromper a caminhada da humanidade em direcção a um mundo governado pelo bom senso, pela tolerância e pela observação verificável. Os argumentos são primários e contrariados pela evidência científica mas, que fazer?, capitalizam em emoções também primárias e na ignorância. Não é ciência, mas traveste-se de ciência. Como louva-a-deus predador (que boa imagem), assume as cores da verdura para melhor engodar a presa.

O objectivo de transformar a nossa cultura numa cultura científica é a consubstanciação de parte do ideal republicano, e representa a nossa melhor frente de combate contra o obscurantismo, mãe de todas as misérias.

A construção de um conhecimento do universo de forma verificável é um exercício de democracia todos lhe poderão ter acesso, sem distinção; todos poderão pelo mesmo processo pôr em cauda conhecimento anterior, sem império do dogma. É, também e por isso, um exercício de desprendimento e isenção.

Pensar, de uma forma que nos eleve à imparcialidade da atitude científica, exige esforço e treino, exige que o nosso organismo se condicione a ter prazer nesse exercício e isso não ocorre de forma natural. Mas porquê nos admirarmos, se para qualquer outra actividade humana o mesmo se exige, quando o objectivo é a qualidade, a superação, a excelência?

O epílogo do episódio acima relatado é saboroso, ainda que possa vir a ser história sem exemplo, se não acautelarmos a educação das novas gerações. Os eleitores de Dover, PA, votaram em Novembro num novo Conselho Directivo para a Escola e, liminarmente, demitiram todos os membros do anterior conselho. Lucidamente, compreenderam que aqueles supostos educadores se preparavam para organizar uma encenação mistificadora de educação. E, aí, caiu o pano e as vergonhas ficaram à mostra: o pregador Pat Robertson, notório radical pregador com programa de televisão próprio, não hesitou em fulminar o povo de Dover: “aviso os bons cidadãos de Dover - se houver um desastre na vossa área, não se voltem para Deus, porque acabaram de rejeitá-Lo da vossa cidade”. Sem máscaras, afinal já não era teoria.

Claro que imagino que esse mesmo pregador não hesitará em vacinar-se contra a gripe das aves, com medo da evolução do vírus.

A missão do Ciência Viva é, assim, civilizacional. A abordagem do conhecimento e a humildade perante ele são valores essenciais a fazer adquirir pelos jovens. Passada a arrogância (e a que custo!) de colocar-se a Terra no centro do universo, ainda há quem mantenha a arrogância de, em nome de uma suposta humildade perante um criador, colocar o homem no mesmo centro. Mas o verdadeiro conhecimento, aquele que vem laboriosamente sendo acumulado por incontáveis pessoas que aceitam o método científico é, afinal, a melhor fonte de humildade.

 

** artigo publicado na revista e-Ciência, nš61, 17 de Novembro de 2005
* http://www.cienciapt.net/revista/20051117sem.pdf



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