Em
Dover, cidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, o Conselho
Directivo da escola secundária local decidiu, este ano
mesmo, alterar os programas lectivos para obrigar os
professores a ensinar, na disciplina de ciências naturais, a
“teoria” do “desenho inteligente” (intelligent design), como
contraponto à teoria da evolução cujo conceito inicial
devemos a Darwin. Assistimos hoje, regularmente e em
especial nos Estados Unidos, a uma verdadeira ofensiva conta
o pensamento laico e científico, por parte de organizações
cuja agenda de fanatismo religioso não as distingue de
outros fanáticos no mundo.
A chamada “teoria” do “desenho inteligente” propõe que o
evolucionismo está errado e que o que observamos na natureza
é tão complexo que só poderia ter sido criado por um ser
superior com a capacidade para tal engenharia. É a religião
fanática entrando pela porta do cavalo, vestindo-se de
roupas respeitáveis (já não é fé, é teoria, já não é deus
mas uma inteligência superior ou extra-terrestre) para
interromper a caminhada da humanidade em direcção a um mundo
governado pelo bom senso, pela tolerância e pela observação
verificável. Os argumentos são primários e contrariados pela
evidência científica mas, que fazer?, capitalizam em emoções
também primárias e na ignorância. Não é ciência, mas
traveste-se de ciência. Como louva-a-deus predador (que boa
imagem), assume as cores da verdura para melhor engodar a
presa.
O objectivo de transformar a nossa cultura numa cultura
científica é a consubstanciação de parte do ideal
republicano, e representa a nossa melhor frente de combate
contra o obscurantismo, mãe de todas as misérias.
A construção de um conhecimento do universo de forma
verificável é um exercício de democracia todos lhe poderão
ter acesso, sem distinção; todos poderão pelo mesmo processo
pôr em cauda conhecimento anterior, sem império do dogma. É,
também e por isso, um exercício de desprendimento e isenção.
Pensar, de uma forma que nos eleve à imparcialidade da
atitude científica, exige esforço e treino, exige que o
nosso organismo se condicione a ter prazer nesse exercício e
isso não ocorre de forma natural. Mas porquê nos admirarmos,
se para qualquer outra actividade humana o mesmo se exige,
quando o objectivo é a qualidade, a superação, a excelência?
O epílogo do episódio acima relatado é saboroso, ainda
que possa vir a ser história sem exemplo, se não
acautelarmos a educação das novas gerações. Os eleitores de
Dover, PA, votaram em Novembro num novo Conselho Directivo
para a Escola e, liminarmente, demitiram todos os membros do
anterior conselho. Lucidamente, compreenderam que aqueles
supostos educadores se preparavam para organizar uma
encenação mistificadora de educação. E, aí, caiu o pano e as
vergonhas ficaram à mostra: o pregador Pat Robertson,
notório radical pregador com programa de televisão próprio,
não hesitou em fulminar o povo de Dover: “aviso os bons
cidadãos de Dover - se houver um desastre na vossa área, não
se voltem para Deus, porque acabaram de rejeitá-Lo da vossa
cidade”. Sem máscaras, afinal já não era teoria.
Claro que imagino que esse mesmo pregador não hesitará em
vacinar-se contra a gripe das aves, com medo da evolução do
vírus.
A missão do Ciência Viva é, assim, civilizacional. A
abordagem do conhecimento e a humildade perante ele são
valores essenciais a fazer adquirir pelos jovens. Passada a
arrogância (e a que custo!) de colocar-se a Terra no centro
do universo, ainda há quem mantenha a arrogância de, em nome
de uma suposta humildade perante um criador, colocar o homem
no mesmo centro. Mas o verdadeiro conhecimento, aquele que
vem laboriosamente sendo acumulado por incontáveis pessoas
que aceitam o método científico é, afinal, a melhor fonte de
humildade.
** artigo publicado na revista e-Ciência,
nš61, 17 de Novembro de 2005
*
http://www.cienciapt.net/revista/20051117sem.pdf
<< Anterior
| Seguinte >>
|