E D I T O R I A L
A alma em papel selado A nossa cultura lusitana tem decerto méritos mas há vícios de que não se livra e que são, porventura, a mais irritante das fontes de ineficácia e ineficiência da nossa sociedade. Assim nos parece o discurso sobre tudo, em Portugal.
Quando se aprecia uma proposta, não se lhe debate o mérito mas as intenções, obviamente ocultas, de quem propõe. Discute-se quem e não o quê.
Quando se testemunha um discurso, escalpeliza-se a pose, os tiques ou hesitações do orador muito mais do que a mensagem.
É o império da forma sobre o conteúdo. Como se ainda estivéssemos no feudo do papel selado, recordam-se?: o que importava então era a cor do papel, o número de linhas que haviam de ser 25, os milímetros da margem, o selo em cima, enfim, tudo menos o texto.
Um requerimento gatafunhado e ilegível, se obedecesse à norma, era inevitavelmente aceite; porém, se errasse na heresia de não respeitar o modelo em qualquer detalhe, era inevitavelmente rejeitado ainda que fosse escrito em português escorreito e caligrafia bem desenhada e o seu texto plenamente compreensível.
Ora esta maleita, doença lusa e crónica, é invasiva e dificilmente extirpável da nossa cultura, emerge em recidivas perniciosas na nossa administração pública mesmo quando esperaríamos que o mal estivesse regredindo, por via das bem intencionadas iniciativas do SIMPLEX.
Como de outra forma qualificar os formulários cujo preenchimento se exige para se apresentarem propostas às medidas financiadas pelo QREN? Aberrações administrativas - ou apenas borbulhas da costumada enfermidade?
Quando esperaríamos um esforço sério e incisivo na avaliação da execução dos projectos, o que vemos é a obsessão administrativa: domesticar os procedimentos, fiscalizar a forma.
Então, os processos inventam-se à medida das (in)habilidades dos amanuenses que hão-de verificar os cêntimos e os detalhes formais - e aí surgem-nos repetidamente as mais incríveis solicitações sobre papelada a reunir e carimbos a pintar nos papéis, e sobre dados a forçar em programas mal concebidos por gente que não está familiarizada com as realidades da gestão, dotados de interfaces incríveis de ineficientes e inadequados.
É novidade? Já a FCT, e a AdI, nos deu (deu? sejamos optimistas...) a mesma cefaleia repetidamente. Com cada vez mais custos agravados de gestão, inúteis e improdutivos.
Quanto aos resultados dos projectos, isso é secundário. Temos mesmo papel selado na alma, se ela própria não estiver plasmada em 25 linhas. A Oeste nada de novo, comentaria Erich Maria Remarque se a sua guerra fosse esta.
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