Por Rui Mota Cardoso*
"O Mundo é um caos; o Homem perde-se nele; a sua
posição intelectual reage e trabalha para lhe encontrar
caminhos ("méthodos"), isto é, ideias claras e
firmes, convicções positivas sobre o que são as coisas e
o mundo, (...) o Eu, os Outros, as acções e os
valores"i.
Tomar posse da realidade - apre(e)ndê-la - é um acto de
conhecimento. Não existe saber fora da apropriação
transformadora, em profundidade, dos homens sobre a
realidade, numa práxis de acção-reflexão
indissociáveis. O conhecimento dá ordem ao caos e tende
para a "forma perfeita", para a totalidade (a universidade).
Esta postura, imanente ao Homem, substantiva a
Universidade, pelo que deve reflectir-se na sua prática
científica e pedagógica. No seu Ser a Universidade é
Cultura.
Mas, "a Ciência é o intelecto em forma",
é o exercício da dúvida e a exigência de verdade. A
prova e a refutação. A descoberta. É o maior portento da
Cultura: o adestrar da razão, no conhecimento e
aperfeiçoamento humanos.
E isto significa que paradoxalmente (ou antes,
coerentemente) a Universidade só tem condições para
atingir a sua missão substantiva se a alicerçar na
função criadora e promotora da Ciência. Ou seja, "A
Universidade, antes de ser Universidade, tem que ser
Ciência e Investigação", pois estas são o "húmus
onde finca as suas raízes vorazes", o seu
pressuposto radical, a sua dignidade. Estas criam o ambiente
de entusiasmo e esforço científico de que não prescinde,
porque nela se nutre.
Contudo, se a função criadora e promotora da Ciência
é a sua dignidade, se a transmissão de Cultura e a
formação universitária é o seu prestígio e o seu
fundamento, o ensino exigente de uma Profissão é a sua
urgência e justificação institucional.
Ora, é consideravelmente mais fácil adquirir
conhecimentos acerca da Ciência do que adquirir as
capacidades para os aplicar nas competências complexas de
resolver problemas, tomar decisões, compreender
significados e criar novas ideias. É o ensino destas
competências de alto nível que nos desenvolve a capacidade
de pensar e de pensar sobre o próprio pensar, que nos
capacita na tarefa e/ou na estratégia, como senhores do
nosso saber-fazer e inteligentes nos produtos que criamos ou
solucionamos.
"Cultura é o sistema de ideias vivas que cada
tempo possui; melhor, é o sistema de ideias das quais o
tempo vive. (...) Estas são o solo onde apoia a sua
existência", a sua ciência e a sua instrução.
"Cultura é o sistema vital das ideias de cada tempo,
(...) porque é forçoso viver à altura dos tempos e muito
especialmente à altura das ideias do tempo".
Cultura não é erudição. É um sistema coerente,
aberto, reformulável, datado e situado de ideias universais
sobre o Mundo e a Humanidade. É o conjunto de convicções
(científicas, acientíficas e metacientíficas), recebidas
ou criadas, que nos sustêm unos e diversos, no que é uno
na diversidade (universidade); com elas nos movemos
entre as coisas e as pessoas, tratamos e ocupamo-nos da vida
e do mundo, definimos o nosso "texto" e o nosso
plano. A ilusão pacificadora dos que se mantêm incultos,
na terrível actualidade dos problemas existenciais, é o
que se designa eufemisticamente por "cultura
geral".
A inegável importância da Ciência no mundo actual é
uma convicção da nossa Cultura. É a Cultura que
perspectiva a Ciência, não é a Ciência que perspectiva a
Cultura, mas tal facto responsabiliza o ensino da Ciência
na transmissão cultural dos caminhos da racionalidade.
Terá a Universidade fracassado deste propósito que lhe
não é estranho nem irreal, uma vez que o incluiu nos seus
estatutos? Atenta à Ciência, à investigação e ao ensino
profissional, respeitará o seu fundamento cultural?
"A vida universitária aceita hoje implícita e
cumplicitamente o fracasso do propósito cultural e a norma
de dar esta exigência por antecipada, exterior ou de
fundamentação irreal".
Não a reconhecemos nos debates e polémicas do nosso
tempo; repugna-lhe a ressonância instantânea dos modismos
mediatizados, mas a Cultura do nosso tempo não parece
merecer-lhe discussão e análise. E, no entanto, essa mesma
Cultura reproduz as ideias vivas do tempo, as ideias que
criam, recriam e renovam o Homem e as suas instituições
(inclusive a Universidade).
Por outro lado, "Ninguém é culto em física ou
matemática (quando muito é sábio numa matéria) ... os
homens de hoje são novos bárbaros, os mais sábios mas
também os mais incultos de sempre. As suas ideias e actos
políticos são ineptos, como o são os seus amores, as suas
opiniões, as suas decisões, os seus "avisados"
conhecimentos. O profissionalismo, a especialização, (a
tecnocracia) têm consequências: a peculiar brutalidade e a
agressiva estupidez com que se comporta o homem que sabe
muito de uma coisa e ignora a raiz de tudo o resto".
Mas, os homens do futuro não poderão ser mais bárbaros
sábios, até por necessidades intrínsecas à própria
Ciência que exigem hoje uma Cultura integral, na
interdisciplinaridade, na analogia, na criação de modelos
homomórficos, no fundamento epistemológico, na
responsabilidade ética, etc. E, se não é admissível
conceder um título superior a quem não é culto (antes de
ser cientista e/ou profissional), a Universidade que o
concede tem de responder por este estado de coisas.
E os institutos de investigação pelas consequências do
seu isolamento teórico.
ORTEGA
Y GASSET, J. (1930). Misión de la Universidade. Revista
do Ocidente. Madrid
*
Médico psiquiatra
Prof. Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto
Responsável pela Unidade EDCD do Instituto de Patologia e
Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP)